A chuva
Acordei-me com o barulho da chuva. Era suave o barulho, como o são todos os barulhos de chuva. Lembrava um pouco minha infância: a casa de minha infância tinha o telhado de zinco e quando chovia, fazia barulho. Quanto mais intensa a chuva, maior o barulho; naquela época, a escuridão, o forte barulho da chuva, os raios cortando o céu com sua luz imponente, os trovões gritando como se fossem ogros no pântano – tudo associado a fértil imaginação de uma criança que criava sucessivos mundos para seus brinquedos, tornava a noite longa, a noite (ou madrugada de chuva) num filme de terror, como aqueles da sexta-feira treze.
Ao passo que a chuva, quando suave, acalmava, dava uma sensação de relaxamento, entorpecia. Era um crime levantar em dias de chuva, principalmente de chuva suave. Até mesmo a escola se recusava a trabalhar nos dias de chuva: ela também se mantinha ociosa e mantinha seus alunos ociosos. Ficou enraizada, em minh'alma, a ideia de que dias de chuva suave são também dias de ociosidade – inclusive ociosidade para levantar.
A chuva caía e eu, entorpecido, relutava para não acordar em definitivo. Estava num estado de subconsciência onírico: minha mente despertava, mas meu corpo se mantinha dormindo. O mundo lá fora falava, os sons de fora vinham buscar meu ouvido; ainda que embaçada, a luz (tímida) chegava aos meus olhos. A tevê balbuciava qualquer coisa (também parecia sonolenta). Nesse conflito entre despertar e se manter dormindo, apenas um pode vencer. E como o sono não é um dos meus melhores amigos, a vigília prevaleceu e me vi obrigado a levantar. Basta que se pise fora da cama para perceber a urgência do mundo, principalmente quando se é adulto ou vítima deles. Nesse caso, é preciso sair para comprar pão. Nessa chuva?! Não há outro modo!
O vento parece que me esperava lá fora, pois bastou que eu abrisse a porta para que ele viesse com tudo me abraçar. Um abraço gélido, inconveniente. Alguns pingos de chuva vieram trazidos por ele. Caíram bem no rosto, despertando o que faltava ser desperto. Abro o guarda-chuva, o vento mais intenso parece não querer que eu saia. Insisto: primeiro obstáculo vencido – o vento. Lá fora, o deserto. A chuva está intensa e logo percebo a impotência do meu pequeno guarda-chuva frente a ela. A rua parece um rio. No começo, talvez por instinto, evito ser molhado por ela, inutilmente. Primeiro uma poça, depois o vento (que parece mais chateado) quase joga meu guarda-chuva para trás, me molhando quase que inteiramente. Andava lentamente, querendo (inutilmente) me preserva da chuva. Porém, me resignei e me permiti ser molhado por ela.
Virei a esquina. A rua parecia mais deserta. Todos estavam dormindo ou deitados em suas camas – dane-se o café da manhã! Num pequeno comércio, algumas pessoas se reuniam. A grande maioria, funcionários e observavam os transeuntes. Não sei porque usei o plural, posto que só havia eu de transeunte. Segui meu curso. A rua de cima (por ser a de cima) estava menos inundada. Saí do meio e fui para a beirinha, pois não há calçadas. Virei a terceira esquina, subi meia ladeira e cheguei a padaria. A padaria estava morta: nem as moscas davam o ar de sua graça. Pedi pães brotinhos amanteigados, como de costume. Enquanto eu pedia, me veio uma melancolia à alma. Sorri ao padeiro, ou tentei esboçar um sorriso, o paguei e saí, um pouco casmurro. Parece que o mundo pesava – existir pesava, no meio daquela chuva, que agora caía como chumbo.
No caminho de volta, na rua do mercadinho, onde todos dormiam e todas as casas estavam fechadas, havia uma exceção: uma casa estava aberta, duas moças estavam na janela – uma mais para fora, mexendo no seu smartphone; a outra mais dentro, sentada no sofá. A que estava sentada no sofá me olhou. O olhar dela me invadiu e, antes mesmo que ela percebesse a fragilidade que permitiu que seu olhar penetrasse em mim, eu retribui seu olhar e olhei-a. Ela, mais forte, permitiu que meu olhar invadisse sua privacidade e modelasse seu ser. Conversamos pelos olhos. Eu, casmurro, ela como um bicho curioso. Quinze segundos, mas que renderam o diálogo de um dia inteiro. O tempo e o espaço romperam esse contato, como fazem com todos os contatos. E eu fui empurrado a seguir com meu curso: “Desculpe não ficar para o café ou um chocolate quente!”
A chuva ficou mais pesada. Eu já estava encharcado. O vento assobiava com força, parecia rugir. Eu sentia que estava me liquefazendo. A chuva se manteve firme, não oscilou um minuto. Virei a esquina – a rua parecia um lago, agora. E eu me assemelhava a Jesus caminhando sobre as águas. E me deixava liquefazer nela. O ser se tornava insustentável de suportar. Lembrei de Kundera. Eu nem se cheguei em casa ou se ainda estou vagando por aí, numa chuva qualquer – me deixando levar pelo vento, sem rumo, como um barco a vela...
(Felipe Catão)


Comentários
Postar um comentário
Exponha sua opinião, sem medo.