Sob a lua
De vez em quando a
saudade bate a porta e você não pode fingir que não está. Pode ficar quieto, em
silêncio, porém, ela é insistente e continua batendo – ela sabe que por mais
quieto que esteja, você está lá. É como aquela parábola de Jesus, de um amigo
inoportuno que vem acordar o amigo tarde da noite querendo pão; diante da falta
de vontade do amigo ele bate mais alto e insiste até o amigo ceder. A saudade
insiste até você cansar e ceder, abrindo a porta para que ela entre, não
importando qual é o dia, o horário, o ano: ela bate e, inevitavelmente, você
tem que deixar que ela entre.
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Eu estava na fila do
supermercado, quase horário de almoço. O dia estava quente. Havia muita gente
na fila e eu suava como se fosse uma vela derretendo. O ar do supermercado
estava ligado, mas era impotente diante do número de pessoas e do calor do dia.
Haviam 7 filas, todas cheias de gente. Faltavam 5 pessoas para chegar minha
vez. Procurei fixar o olhar num pacote de biscoito que estava no meu carrinho
de compras, numa fútil tentativa de me distrair. Funcionou por algum tempo,
porém, sempre a impaciência me vence quando se trata de filas de supermercado. Olhei
ao redor, para as outras filas, para ver se encontrava um rosto familiar, um amigo
ou conhecido, talvez. Foi então que a vi, na terceira fila, encostada de
maneira apática no seu carrinho de compras. Quase tive um troço – fiquei branco,
com falta de ar, com tontura: abaixei a cabeça para que ela não me
reconhecesse, inutilmente.
Era Clara, minha
ex-namorada da faculdade. Havia muito tempo, mais de 12 anos, que eu não tinha
noticia dela, desde que ela se mudou. Quer dizer, tinha “vultos” de noticias quando
encontrava algum amigo daquele período ou algum familiar dela. A ultima que
tive, inclusive, dizia que ela tinha se casado e que por causa das condições do
marido, estava sempre viajando indo de Estado à Estado. Por isso o susto – era incrível
(no que a palavra incrível carrega em si de mais literal) que ela estivesse
ali. Será que se separou do marido? Ou apenas está de férias? Veio visitar os parentes?
Continuei cabisbaixo, com o coração quase pra sair pela boca. Inacreditável (para
usar outro adjetivo) como ainda hoje ela ainda me causa impacto. Olhei disfarçadamente
para ver se ela ainda estava ali: estava! E dessa vez fui pego em flagrante –
ela me viu e me reconheceu. Pareceu tomar um susto também, mas superou o
espanto com um sorriso de canto de boca, sem graça. Acenei para ela e ela respondeu
com um aceno para minha. Voltei minha atenção (pelos menos minha aparente
atenção) para a fila, que seguiu seu fluxo.
Por sorte (dela), ela venceu
a fila primeiro. Olhei para a fila onde ela anteriormente estava, e ela não estava
mais. Respirei um pouco aliviado, porém, com uma pitada de arrependimento. Eu poderia
ter falado com ela, qualquer trivialidade, ainda que por educação, para manter
o protocolo social. Porém, ponderando agora, depois de tantos anos, vejo que
nos tornamos estranhos, apesar de termos um passado que por muito tempo foi em
comum; e que não haveria razão para nos falarmos. Tive que me contentar com
esse pensamento recém surgido e agarrá-lo como uma verdade, seguindo minha
vida, passando as compras e pagando-as. Foi como agarrar o vento: ela estava na
saída do supermercado me esperando. Pareceu proposital, mas eu realmente não a
percebi parada na saída, tão fixado estava na ideia de que éramos estranhos. Ouvi
apenas sua voz:
- Ei mal-educado, não
dá sequer as horas para uma velha amiga?
Fiquei constrangido. Em
parte, por ter sido tão relapso e, de fato, mal-educado, não falando com ela. A
ideia de que éramos estranhos depois de tantos anos, por isso, não falar com
ela, me parecei extremamente boba agora. Eu não esperava que ela me esperasse
ali parada, ainda mais que se dirigisse a mim. Parece que levei um soco no
maxilar – fiquei desorientado. Tentei juntar algumas palavras e balbuciei:
- Des... desculpa, eu
realmente não havia percebido que era você.
- Como não? Na fila
você me olhou com os olhos arregalados como se tivesse visto um fantasma.
Caramba! esse foi bem
lá no estômago. Voltei a ficar com falta de ar de tão forte que foi a pancada. Mesmo
depois de tantos anos elas ainda sabia ler meus pensamentos. Mas me recuperei e
respondi:
- Quis dizer que não
havia percebido que era você agora, aqui parada.
- Tudo bem!
Silêncio
desconcertante. Eu não sabia como prosseguir, estava tonto, sem chão; e ela
esperava que eu prosseguisse. Eu estava nervoso, mas tinha que tentar me manter
firme para que ela não percebesse que mesmo depois de anos ela ainda exerce
influência sobre mim, mesmo sabendo que era uma tarefa inútil – ela sabia ler
meus pensamentos. Respirei internamente e perguntei:
- Como você está?
- Estou ótima! ela me
respondeu. E você?
- Bem, estou bem. Por
onde você anda, como está sua vida?
- Posso dizer que mudei
muito. Aprendi muito com os meus erros e cresci. Sou uma pessoa feliz. E hoje
eu não ligo para o que as pessoas pensam ou dizem sobre mim, procuro me manter
livre e independente.
- Parece algo que eu
diria, exceto a parte da felicidade...
- Por que? Você não é
feliz? ela perguntou
- É mais pelo que eu
penso sobre a felicidade. Como todo sentimento, vejo a felicidade como
transitória. Isso não significa que eu não estou feliz. É mais uma questão
hermenêutica, entende?
- Sim, entendo.
- Soube que você casou...
– ela me interrompeu bruscamente:
- Sim, casei. Desculpa,
mas preciso ir. Posso pegar seu número pra gente conversar mais tarde?
- Sim, anota aí! – dei meu
número.
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Vivemos, eu e a Clara,
o que se pode chamar de “amor impossível”. Nos conhecemos na faculdade: eu
fazia jornalismo e ela química. Tínhamos amigos em comum que nos apresentaram. Houve
uma mesa redonda, organizada pelo colegiado de história e aberta a todos, sobre
a ditadura militar e eu fui participar. Apesar de fazer química, ela era muito
politizada e também foi. Taís, uma amiga em comum, nos apresentou. Sentamos ao
lado um do outro. Fiquei fascinado com a forma de como ela tomava nota de
absolutamente tudo. Eu seguia um padrão um tanto preguiçoso de anotar somente
frases que de alguma forma se interligavam e davam clareza ao discurso. Retirei,
cirurgicamente, um pedaço de uma das folhas do meu caderno de anotações e
escrevi uma frase de Santo Agostinho, entregando para Taís (que na minha cabeça
mostraria a ela). Vendo que a Taís não mostrara, decidi eu mesmo passar o
pedacinho de papel adiante. Ela leu e escreveu uma resposta simples, como se tivesse
entendido o que eu quis dizer. Nesse momento as discussões sobre a ditadura
perderam o sentido: iniciamos um diálogo cheio de declarações nas entrelinhas,
piadas e confissões. No meu caderno de anotações não havia mais nada sobre a
ditadura, mas coisas do tipo: seu rosto parece perfeitamente desenhado e seus labos
como um imã para o meu.
Nesse dia fomos juntos
para casa (ela morava no mesmo alojamento que eu). Conversamos sobre o céu, a
impressão que cada um tinha e a relação quase metafisica que mantínhamos com a
natureza. Ela me falou que costumava sentar a noite na varanda do prédio onde
morávamos e ficar observando as estrelas, contando elas. Tantas coisas em
comum: me apaixonei de cara. Saímos muitas vezes: íamos a pizzarias, cafés,
barzinhos – conversávamos sobre tudo. Até o dia em que ela sumiu. Descobri que
ela estava doente. Liguei para ela, ela me falou o hospital e fui visita-la.
Cuidei dela durante todo o período em que ela ficou no hospital. Decidimos
namorar, ela me apresentou seus pais, me levou para os almoços de família que
aconteciam na casa de seus país e todos os dias passamos a trocar confidências.
O amor que desenvolvemos um pelo outro era puro, como a agua que sai de uma
fonte. Com o tempo, fomos nos aproximando cada vez mais. Saímos do alojamento
fornecido pela faculdade e alugamos um cantinho para a gente. Tudo transcorria
de maneira serena e magnífica.
Foi então que
descobrimos o emblemático aforismo 428 de “Humano, demasiado humano” de
Nietzsche: ao viver próximo de mais de uma pessoa é como se tocássemos numa
bela pintura com os dedos sujos, com o passar do tempo teremos nas mãos apenas
um quadro sujo e nunca mais veremos o desenho e a sua beleza original – perde-se
muito no contato íntimo, seja com os amigos ou com quem decidimos partilhar as
meias. E foi exatamente isso que nos aconteceu. Éramos faces diferentes de uma
mesma moeda, pagamos por nossa “geminianidade” de almas: brigas homéricas, acusações,
produzimos cenas que nem mesmo Martha Medeiros conseguiria reproduzir em suas
crônicas. Por fim, fomos percebendo que pouco a pouco nosso relacionamento
desgastou o amor que sentimos um pelo outro. Vieram as traições e o fim da
nossa relação – um fim desastroso que nos deixou cheios de ressentimento e que
me fez entrar em minha mais profunda crise existencial, com quadros de
alternância de humor, automutilação, e depressão profunda.
Com o passar do tempo, fui
trabalhando em mim essas feridas que foram cicatrizando gradualmente. Até que
depois de muitos outonos e primaveras aprendi a conviver com a ausência dela. Fui
tocando minha vida, traçando planos que não a incluíam, colhendo experiências
das quais ela não fazia parte, realizando viagens e conhecendo pessoas que
nunca ouviram seu nome. Peguei uma marreta e derrubei com muita violência minha
antiga morada, deixando minha vida completamente em ruínas, para então dos
destroços construir uma nova morada. Ainda que se destrua tudo e se construa
algo novo, ainda assim haverá partículas de poeiras dos antigos destroços para
mostrar que existiu em algum momento, uma construção mais antiga. Poeiras ou fragmentos
que você não percebe, que são inconscientes.
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Passados dois dias,
Clara me ligou. Conversamos bastante, sobre o presente e sobre o passado. O
presente, ou pelo menos a nossa percepção do presente, nos faz lapidar o
passado sob uma nova perspectiva. E foi isso que observamos em nossa conversa:
um olhar para o passado sem contaminações ou ressentimentos; um olhar leve, que
nos fez sorrir de muitas coisas e notar com muita vergonha nossas infantilidades.
Combinamos de nos encontrar para beber alguma coisa. E foi o que fizemos.
Nos encontramos a noite.
Ela estava muito bonita. Nos encontramos na casa dos pais dela. Eles estavam ridicularmente
mais envelhecidos, o que me deu uma pena. Havia uma churrasqueira do lado de
fora, no quintal de seus pais, e carne numa mesa ao lado. Ela me olhou, com
aquele olhar muito semelhante ao do gato de botas do filme do Shrek. Entendi o
que ela quis dizer com o olhar, mesmo assim esperei que o olhar se traduzisse em
palavras:
- Bem, eu não sei fazer
fogo e tampouco assar a carne... então...
- Tudo bem, deixa que
eu faço. – ela sorriu desengonçadamente.
Na mesa do jantar, contei
minhas famosas piadas e rimos muito. Não parecia que doze anos haviam se
passado. Ela me contou sobre suas viagens e sobre como quase não terminou o
mestrado. Eu lhe contei minhas aventuras de escritor fracassado que ganhava a
vida escrevendo artigos sobre politica e cotidiano para o jornal local. Além de
ajudar acadêmicos com seus projetos, TCC’s, teses, sobre semiótica, área na
qual me especializei.
Depois das gargalhadas
e histórias, sentamos na varanda da casa de seus pais, em silêncio. Olhando para
o céu (noite de lua cheia), ela me disse:
- Que bom que eu te
encontrei novamente!
- Também foi muito bom
pra mim te encontrar. Pensei que nunca mais te veria.
- Eu vou viajar amanhã?
- Mas já?
- Sim, preciso. Minha vida
não está mais aqui, ela está me esperando lá.
- Eu te entendo...
Ela engoliu seco, pouco
antes de pronunciar a próxima frase.
- Eu conversei com meu esposo
sobre a gente. – disse por fim.
- Como assim? –
perguntei.
- Eu disse que a gente
tinha se encontrado, que a gente tinha se falado, que eu iria te chamar pra vir
aqui hoje... e nós combinamos que seria melhor eu me afastar novamente. Não foi
ele quem pediu, claro, mas é o melhor, entende?
- Sim, claro!
Eu disse que entendia
(e realmente eu entendia), mas no fundo suas palavras me doeram. Eu não tinha
ideia do quanto eu ainda era apegado a ela. Dia desses, minha vida transcorria
normalmente e de repente ela causa um furacão com seu retorno. Ainda estava me
acostumando a ideia de que ela voltou e ela, abruptamente, decide sair mais uma
vez. Confesso que fiquei angustiado, mas ela estava certa: sua vida não era
mais aqui.
- Preciso ir, então!
- Tudo bem! – ela respondeu.
- Mas antes de ir
Clara, queria dizer que esses dias, que essa noite, acabaram despertando em mim
emoções que eu tenho procurado ignorar ao longo desses doze anos... emoções que
eu não fazia ideia que ainda existiam em mim. Sentimentos confusos.
- Eu não sabia...
- Eu também não.
- Então até um dia. –
ela disse.
- Prefiro um “Até breve”.
Esse “até um dia” me assusta.
- Não, até um dia
mesmo.
- Então é um adeus
novamente?
- Sim, é isso!
Meus olhos se encheram
de lágrimas e deu para ouvir a quilômetros meu coração rachar. Mas tinha que
juntar o restinho de força e me manter firme. Ela pareceu voltar atrás (talvez
tenha percebido como me senti) e disse:
- Quer dizer, vou
sempre estar aqui caso queira falar comigo. Você pode me ligar.
- Tudo bem!
- Mesmo assim, adeus!
Eu a olhei nos olhos e
disse com firmeza:
- Ainda te amo. Mesmo
que a vida nos tenha afastado, que o tempo nos tenha afastado, ainda conservo
em mim esse amor. Amor verdadeiro. Creio que fomos vitimas do acaso e de nossas
escolhas, claro. E que o Destino, talvez não quer que fiquemos juntos. Talvez
somos um desses amores impossível, como Abelardo e Heloisa, Romeu e Julieta,
Kafka e Milena Jessenka, Rilke e Lou Salomé... amores verdadeiros e honestos,
mas que não nasceram pra ficar juntos.
Esperei uma resposta,
um “te amo também”, mas recebi apenas o silencio dela – um frio e amargo
silencio. Dei um abraço de despedida e fui para casa. As lágrimas vieram com
força e eu não tive como segurá-las; o soluço acompanhou as lágrimas. É a vida
e esses desencontros fazem parte dela. Segui para casa. Cheguei, entrei sem
perceber o mundo ao meu redor, e fui para o meu quarto. Me joguei na cama e
deixei as lágrimas seguirem seu curso. Senti toda a dor que eu teria que
sentir, sem culpar ninguém, nem a Clara, nem a vida, nem a mim mesmo. Peguei meu
caderno de anotações, o de quando a conheci, e transcrevi um poema de Rilke que
ela jamais veria:
Tu eras
para mim a mais maternas das mulheres,
eras um
amigo como são os homens,
ao olhar,
eras uma mulher
e eras no
mais das vezes uma criança.
Eras a
coisa mais terna que encontrei,
eras a
coisa mais dura com quem lutei.
Eras o
cimo que me tinha abençoado –
e te tornaste
o abismo que me devorou.
(Felipe Catão)


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