O armário


“Mas o verdadeiro armário não é um móvel cotidiano. Não se abre todos os dias. Assim, a chave de uma alma que não se confia não está na porta”.
(Gaston Bachelard in A poética do espaço)

Anoitecera, aquele homem encurvado adentrava em seu quarto e sentava numa cadeira, de frente para um armário que era seu havia anos. Comovido, olhava o armário com nostalgia. Pouco se sabia sobre o armário, menos ainda sobre o por que da admiração do homem por ele. Sabia-se o estilo: era colonial, segundo dizem. No entanto, havia o desenho de dois girassóis no armário, desenhados em estilo moderno. Tinha pouco mais de 60 cm e, diferente dos outros onde as portas se destacam, este era exclusivamente composto por gavetas. Dentro delas, o homem guardava, para os olhos do leitor não habituado a nostalgia, velharias.

Todos os dias o homem sentava de frente para o armário e o fitava bem. As vezes parecia se perder na admiração. Aquele olhar dizia que, na verdade, o armário que ele olhava não era bem aquele móvel, mas algo de interior. O armário externo era apenas uma chave que utilizava para acessar seu armário interior. O armário era todo o tempo e todo o espaço. Era sua eternidade ali, a sua frente, ali dentro de si. Passadas as horas de contemplação, ele se levantava, passava, suavemente, os dedos pelo armário, como quem acaricia a mulher amada. Olhava os dedos: sem poeira – o armário estava sempre polido. Passava a abrir, uma a uma, as gavetas. Esse ritual sagrado sempre o emocionava profundamente. Não eram raras as vezes que ele terminava o ritual com lágrimas nos olhos. 

Dentro das gavetas, haviam folhas manuscritas, talvez cartas, pequenos frascos, cascalhos, pedras de todos os formatos e tamanhos, terra dentro de algumas garrafas. A cada visão de suas relíquias era tomado por um êxtase tão intenso, que se sentia cansado – um cansaço existencial que o agredia ferozmente. Ele tornava a sentar, porém, sem olhar para o armário. Os olhos ficavam vermelhos e no peito uma dor lancinante. Passado um tempo, ele se levantava, e ia para a janela, olhar o mundo. E via no mundo seu armário. Todo o mundo guardava um pedaço de si, como ele guardava um pedaço do mundo em suas gavetas...

Um dia, alguém lhe bateu a porta. Ele, sôfrego, foi ver quem era. Era uma mulher vestida de preto, com um véu que lhe cobria o rosto. Trocaram algumas palavras. Ele ficou perturbado com o que ela lhe disse. Procurou sua cadeira, a mulher o ajudou a se sentar. Sentou com as mãos no rosto. Olhando alhures, podia se dizer que recebera uma notícia que o deixara desesperado. A mulher se mantinha de pé, a sua frente. Ela estendeu a mão para ele, ele a tocou e, com um pouco de esforço, se levantou. Saiu com a mulher pelos fundos de sua casa. A saída pelos fundos era deserta. Ele ainda olhou para trás. Viu-se cair de seus olhos, uma lágrima raquítica, solitária. Ele saiu sem poder ver seu armário. Nunca mais voltou, nunca mais foi visto por ninguém. A última coisa que disse, e que pôde ser testemunhada apenas pela brisa que soprava na ocasião de sua partida foi: “Quantos homens se perdem quando abandonam seus armários!...”
(Felipe Catão)

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