Amar



Ela chegou na frente, ele, em seguida. Ela era graciosa: um observador sem poesia na alma, diria que ela era um pouco gordinha; sua pela era branca, seu cabelo castanho, o sorriso, embora demasiado honesto, carregava um quê de tristeza. Ele era alto, magro, um pouco desengonçado; parecia até um pouco atlético, mas apenas aparentava.

Era a hora do almoço. Fora do shopping fazia um calor infernal – típica tarde manauara. Chegaram a praça de alimentação (do shopping) aliviados – parece que fugiam de um deserto. Ela puxou uma cadeira e sentou. Havia delicadeza em cada um dos seus gestos. Ela parecia atuar, tamanha a delicadeza. Ele, mais rústico, largou a mochila sobre a mesa. Sentou-se mais folgado, abriu a mochila e tirou uns cadernos e umas apostilas. Ela seguiu o exemplo: pegou sua mochila, que havia colocado na cadeira ao lado, abriu, tirou primeiro um caderno que parecia bastante conservado, e umas apostilas apenas grampeadas. Estendeu tudo na mesa. Tudo parecia pesado, mas na verdade, era ela quem estava cansada. Trocaram algumas palavras. Ela sorriu (talvez ele tenha lhe contado uma piada). Ele se debruçou sobre a mesa e beijou-lhe suavemente nos lábios. Tudo de modo natural e ao mesmo tempo romântico, como todo clichê.

Ela pegou uma de suas apostilas apenas grampeada, ele pegou uma sua encadernada. Ambos liam de maneira concentrada. Liam cerca de cinco minutos, parando para comentar com o outro o que leram. O gesto era litúrgico, marcado por uma rigidez e disciplina quase monásticas. Ao redor do jovem casal, o mundo se desenhava: outros estudantes sentados em grupo riam de maneira estrondosa, enquanto comiam seus sanduiches ou hambúrgueres desorganizadamente; os funcionários das dezenas de restaurantes e fast foods passavam de um lado para o outro freneticamente, como se suas vidas dependessem de atender de maneira eficiente os fregueses. Outras pessoas, em geral funcionários e gerentes das centenas de lojas e quiosques do shopping, almoçavam – alguns apressadamente, outros bem lentamente, desafiando o tempo destinado ao almoço (como eu fazia).

O estudo foi interrompido: seus lanches-rápidos haviam chegado. Colocaram os cadernos e apostilas de lado e começaram a comer. Ele comia mais devagar, ao passo que ela parecia não comer a dias, tal era a ferocidade com que, segundo a segundo, diminuía drasticamente seu hambúrguer. Ela terminou, tomou seu refri e ficou observando seu jovem amigo comer. Ela o olhava com admiração e graciosidade. Ele parecia envergonhado, como se o olhar dela desnudasse o ser dele e ele pudesse ser visto com o olhar dela por todos. Ele sorriu, tocou no canto da boca dela e limpou o resto da maionese que havia ficado esquecido ali. Os papeis se inverteram: agora era ela quem estava envergonhada. Ele terminou seu “almoço”, tocou nos cabelos dela e começou a fazer delicados afagos. Ela se inclinou para o lado em que a mão dele estava afagando-a. sentados, frente a frente, conversavam pelo olhar. Ele a beijou, ela retribuiu... e continuaram trocando carícias, como se nada mais existisse, a não ser apenas eles dois e o fogo da sua paixão.

Eu, que lia Rubem Alves, e que parei diante daquela amorosa que se desenhava alguns metros a minha frente, decidi brindar-lhes com um pensamento deste magnifico autor. Peguei meu caderninho de anotações, rasguei um pedaço, de maneira sutil e escrevi: “O amor nasce, vive e morre pelo poder – delicado – da imagem poética que o amante vê no rosto da amada. O amor prefere a luz das velas. Talvez seja porque seja isso tudo o que desejamos da pessoa amada: que ela seja uma luz suave que nos ajude a suportar o terror da noite”. Dobrei, pedi a conta, paguei, peguei o troco e levantei em direção ao casal. De todas as rotas possíveis para sair da praça de alimentação, a que levava a eles era a menos provável, por isso começaram a me observar (com desconfiança) conforme eu me aproximava deles. Cheguei em frente a mesa em que eles estavam, sorri, entreguei para eles o pedaço de papel e disse: “Para o casal”, e me afastei. Ele entregou para ela, ela leu e deu sorriso bobo; logo ele também leu e esboçou o mesmo sorriso. Eu segui o meu caminho e nunca mais os vi.

Hoje, gosto de pensar que talvez eles ainda estejam juntos, sentados numa praça qualquer, trocando beijos e afagos. Que talvez, naquele momento, seu amor estivesse abalado e que, ao ler o bilhete escrito por mim, com as palavras do Rubem Alves, alumiou suas almas e que foram, um para o outro, como uma luz que clareou suas noites mais terríveis. Porém, penso que talvez hoje não estejam mais juntos. O amor, de modo particular, o amor juvenil, é efêmero, passageiro, como o voo dos pássaros: está sempre migrando. É possível que tenham se cansado um do outro, ou ela dele ou ele dela, e que tenham terminado. Talvez um acaso, uma cena de ciúme feroz, os afastou... e, então, ambos conheceram novos amores... até mais fortes. Pode ser, também, que ela tenha simplesmente descoberto que não o amava – pelo menos não mais – e decidiu não mais seguir enganando-o e enganando-se e, numa bela tarde, entregou-lhe um pedaço de papel com um poema da Florbela Espanca:

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É Bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi para cantar!

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

Que ele leu, olhou nos olhos dela, chorou, mas viu que era honesto o que ela dizia e que talvez fosse melhor assim – que cada um seguisse seu caminho. Ele a abraçou, ela se culpou, talvez, deixou cair umas lágrimas que há tempos estavam guardadas no fundo da alma... demoraram abraçados e depois se despediram definitivamente, com a certeza de que nada é definitivo, nem mesmo as despedidas...
(Felipe Catão)

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